Como você se envolveu com
questões, lutas indígenas?
Tudo começou na universidade.
Um projecto de extensão abria vagas para uma selecção de alunos da Pedagogia para participarem no Curso de Formação em Magistério
para Professores Indígenas. Curiosa, fiz a minha inscrição e participei do processo selectivo. Fui aprovada! [risos] Uma bolsa
de meio salário-mínimo e na mochila muitos sonhos e expectativas. Meu primeiro contacto com os povos indígenas iria começar
a se dar e eu já estava fascinada só com essa possibilidade.
Na época não
me autodenominava anarquista, mas iniciava algumas leituras das quais estava começando a me identificar. Foi mamão com açúcar:
leituras anarquistas, mais ter contacto com a realidade de sociedades sem estado foi paixão a primeira vista! Sou anarquista
e o anarquismo é viável!
Com esse projecto
de extensão nós, alunos da graduação, desenvolvíamos atividades de monitoria durante as etapas presenciais onde eram reunidos
em dois pólos povos indígenas de todas as etnias do estado, e fazíamos visitas nas aldeias para acompanhar as actividades
passadas pelos professores para que os indígenas desenvolvessem na aldeia. Foi uma experiência muito importante do ponto de
vista que pude conhecer e viver um pouco com a organização de povos Tupi e de povos Timbira, percebendo como se davam as relações
familiares, a organização política e económica, a educação e a relação com o sagrado. Pude também, mais que observar, mas
também sentir a discriminação que a sociedade envolvente tem e alimenta em relação aos povos indígenas. Vi antenas parabólicas
de algum projecto governamental de acesso a tecnologias na educação servindo de varal para roupas. Vi o poder da televisão
seduzindo os mais jovens enquanto o cantor chamava para o pátio e realizava uma cantoria. Vi a mobilização indígena por “Outros
500” quando esta passou em Imperatriz antes de seguir para Cabralia... Quanta resistência naquelas peles coradas, descendentes
e sobreviventes do massacre da colonização européia. Uma revolução começou a se processar dentro de mim...
Faça
um pequeno histórico das lutas dos Awá Guajá.
Antes de tudo, atenção
aos navegantes de primeira viagem: eu sou extremamente prolixa. [risos] Logo vou sempre querer dar uma justificativa aqui...
e um esclarecimento ali... sempre com o objetivo, muito bem intencionado, de melhorar o entendimento! [risos] Então, prepare-se...
Eles ficaram
conhecidos, desde a época do contacto, como Awá Guajá, é a forma como eles se autodenominam que significa homem de verdade.
São considerados como um dos últimos povos nómades e sem agricultura. Falam a língua Guajá da família lingüística do
Tupi-Guarani e ocupam as terras indígenas Alto Turiaçu, Awá, Caru e Araribóia.
No Maranhão,
são 17 terras indígenas, o que corresponde a cerca de 5% do território do estado. As terras indígenas Alto Turiaçu, Awá e
Caru formam o grande corredor que permite a perambulação dos Awá Guajá que vivem em grupos livres, ou seja, isolados
do contacto com a sociedade "branca". As terras Awá e Caru são afectadas directamente pela Ferrovia Carajás que passa ao lado
dessas terras.
O Povo Awá Guajá
vivia na floresta organizados em grupos familiares de cerca de 20 a 30 pessoas que perambulavam na mata, negando-se a fazer
contacto e fugindo de seus inimigos tradicionais, Kaapor e Guajajara.
A sobrevivência
do Povo Awá Guajá começou a ser seriamente ameaçada a partir da década de 60 com a implantação do projeto desenvolvimentista
que se não foi responsável, mas foi grande incentivador do povoamento daquela região, Noroeste do Maranhão. A abertura das
BR 316 e 222 (respectivamente Recife-Belém e São Luis-Açailandia) atraiu frentes agrícolas e camponeses, grilagem de terras
e a criação de cidades onde antes era habitat dos Awá Guajá, Guajajara e Kaapor.
Com essa ocupação
muitos conflitos estouraram e as conseqüências para os Awá Guajá foram o contagio de doenças como sarampo, malaria etc,
e até assassinatos premeditados, o que fez com que muitos grupos se dispersassem. Em 1982 houve a implantação do Projeto Grande
Carajás, o que tornou a situação mais dramática, pois trouxe para a região as siderúrgicas de ferro gusa que são movidas a
carvão vegetal e, por conseguinte, o corte ilegal de madeira, carvoarias e todas as pestes e parasitas que vivem a sombra
do dito desenvolvimento, criado e concebido aos moldes do capitalismo.
Porém, desde
a década de 40 o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e depois a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), mantiveram contactos temporários
com os Awá Guajá, a princípio movido por razões de cunho integracionista. Destes primeiros contactos os resultados geralmente
eram a morte de muitos indígenas, infectados pelas doenças “de branco” adquiridas no primeiro contacto. A partir
de 1973 os contactos foram mais sistemáticos e três Postos Indígenas (PI) foram criados para prestar assistência aos índios
contactados, cerca de 145 pessoas. A frente de atracção, como se chama às equipes da FUNAI responsáveis em realizar os contactos
de indígenas isolados, migrou para outro estado e cerca de 100 indígenas ficaram vivendo de forma isolada, sem nenhum contacto.
Hoje estima-se
que a população Awá Guajá chegue a cerca de 360 pessoas, entre indígenas contactados e indígenas isolados. Habitantes
da floresta pré-amazonica, os Awá Guajá são povos Tupi que praticam a caça, a pesca e a colecta como forma de subsistência.
Logo, são considerados povos colectores e caçadores. Acredita-se que eles vivam o nomadismo como forma de garantir a sua sobrevivência,
pois no início fugiam de seus inimigos tradicionais, depois fugiam das agressões consequentes da expansão das frentes de colonização
e dos grandes projetos desenvolvimentistas (construção de BR e implantação do Grande Projeto Carajás) e suas mazelas.
Somente depois
do aldeamento a FUNAI introduziu a agricultura como forma de garantir mais uma alternativa alimentar para este povo. Actualmente
a população Awá Guajá contactada vive em aldeamentos próximos aos PI da FUNAI, praticando o semi-nomadismo. No período
das chuvas permanecem mais tempo na aldeia, no período da seca algumas famílias chegam a passar até um mês na mata caçando
e coletando mel, raízes e larvas.
Sobre a organização
política, estão organizados em grupos familiares. Não existe a figura do cacique, mas as lideranças correspondem aos chefes
das famílias extensas ou as pessoas mais velhas da aldeia, fiéis depositários da história e do modo de ser Awá Guajá.
ANA - E quais são
os principais problemas deste povo hoje?
Valéria - A questão
fundiária e a subsistência do povo. As terras onde hoje vivem os Awá Guajá são o que restou de mata pré-amazônica no
estado. Logo, são objeto de cobiça de madeireiros e carvoeiro da região, muitos deles responsáveis pelo abastecimento das
siderúrgicas existentes ao longo da Ferrovia Carajás.
O processo de
invasão e destruição da floresta tem-se intensificado. Os grupos isolados novamente estão correndo risco, pois o cerco ao
redor deles começa a se fechar e a sobrevivência novamente está sendo ameaçada. Nenhuma providência séria tem sido tomada
para preservar o território deste povo. E eles seguem seu caminho relegados à sua própria sorte.
Os Awá
Guajá contactados vivem hoje a realidade de 33 anos de pós-contacto. Da teimosia de continuar existindo como povo, resistem
a todas as formas de adversidades. Superaram doenças como a gripe, tuberculose e malaria, hoje não mais mortais, e continuam
firmes enfrentando o “lobo do homem, próprio homem”. Com o crescimento populacional, vitória conquistada nos últimos
anos, a população, em sua maioria constituída de jovens e de crianças, enfrenta os desafios de garantir a subsistência. Com
a intensificação dos invasores dentro da área e diante da inexistência de um plano de vigilância do território, a caça já
não é mais tão abundante. Fica então o dilema: como garantir a sobrevivência das nossas crianças?! São mais de 500 famílias
que moram ou tem seus sítios dentro da terra indígena Awá, são cinco grandes fazendas localizadas dentro desta terra
indígena etc. Na região do Caru e Araribóia algumas lideranças indígenas estão ameaçadas de morte pelos madeireiros. E o governo
brasileiro segue seu curso ignorando a voz e o clamor dos povos indígenas, primeiros habitantes dessa terra que se convencionou
chamar Brasil.
Fale um pouco
dos índios isolados, de etnia Awá Guajá, da situação deles...
Não se sabe ao certo quantos são, estima-se
que possam ser entre 60 a 100 pessoas, divididas em grupos pequenos e que perambulam pelas Terras Indígenas Alto Turiaçu,
Awá, Caru e Araribóia, o que corresponde ao que sobrou de floresta dentro do estado. A situação atual deles é: encurralados!
Estão vivendo nas regiões mais cobiçadas pelos madeireiros, logo devem estar vivendo terror e medo, com sérios riscos de vida.
Em
2004, na Terra Indígena Caru, um casal, mãe e filho, foi encontrado pelos Awá Guajá que vivem hoje a situação do pós-contacto.
Eles haviam ido para uma caça demorada, num ponto bem distante da aldeia. Lá encontraram o casal, fizeram o convite para que
viessem morar com eles na aldeia e eles aceitaram.
No ano passado, na Terra Indígena Araribóia, um grupo de cerca de
20 pessoas fez contacto com os Guajajara que vivem naquela terra. Os Guajajara não conseguiram chegar muito perto do grupo,
pois eles se assustaram e sumiram no mato, deixando todos os seus pertences para trás (arco e flechas, utensílios etc). A
partir de contactos como esses narrados por indígenas e por pessoas dos lugarejos próximos as terras indígenas, é possível
detectar a presença desses grupos nessa região.
Anteriormente a política da FUNAI para esses casos era criar uma frente
de atracção e contactar os índios. Os objetivos eram parte de uma política nacional de integração dos indígenas na sociedade
nacional, entende-se integração como a negação de suas raízes culturais em favor da criação de um Estado-Nação uno. Em outras
palavras, genocídio cultural.
Passado algum tempo a FUNAI desenvolveu como prática demarcar e homologar as terras onde
existissem indígenas isolados, fazendo contacto apenas nos casos em que os povos isolados estejam correndo risco de vida.
É
incrível imaginar que existem povos que conseguiram isolar-se por mais de 500 anos e vivam de forma autónoma e autogestionária,
recusando o contacto e vivendo as suas vidas em paz com a natureza e em constante fuga para não ter contacto com o “lobo
do homem, o próprio homem”. Será que inconscientemente ou conscientemente eles sabem as consequências de se deixar envolver
com o “homem branco” e seus sistemas? Incógnita...
Você
participou recentemente do bloqueio da Ferrovia Carajás em protesto contra a Fundação Nacional da Saúde (Funasa) e o descaso
com os indígenas e mortes de crianças. Como foi tudo isso?
Isso é uma longa história. Com o governo Collor criou-se
uma portaria que retirava da FUNAI, órgão indigenista e não de saúde, a responsabilidade pela saúde indígena, o que passou
para o Ministério da Saúde. Daí uma portaria fez com que a FUNASA assumisse a questão da saúde indígena no Brasil. Com as
conferências de Saúde Indígena foi pensado um modelo de estrutura e atendimento que respeitasse minimamente as especificidades
de cada povo, onde os indígenas pudessem decidir e pensar o atendimento a saúde de suas comunidades, nasce assim um subsistema
de saúde indígena.
Teoricamente deveria haver os Conselhos Locais, Conselhos Distritais e o Distrito Especial de Saúde
Indígena. No Maranhão, a princípio se pensava na instalação de cinco distrito, ao final apenas um distrito foi instalado e
funciona em São Luis, lugar bem distante das aldeias. Dos Conselhos Locais apenas um foi criado. O Conselho Distrital foi
composto e desarticulado. Resultado, não havia o controle social. Na III Conferencia Nacional de Saúde Indígena foi aprovado
a terceirização de algumas ações da saúde indígena por organizações não governamentais. A FUNASA deliberadamente incentivou
a criação de associações indígenas para descentralizar as acções, porém não ofereceu formação.
As ONG’s indígenas,
como ficaram conhecidas, conseguiram prestar os atendimentos emergenciais a que se prestaram, mas as lideranças avaliaram
que os recursos repassados não eram suficientes para cobrir todas as despesas, que as parcelas atrasavam e os “parentes”
começaram a cobrar deles mesmos ao invés de cobrar do Estado, o que aumentou o número de divisões entre os indígenas etc.
O
coordenador regional da FUNASA desenvolveu uma política de racha entre as lideranças indígenas, o que gerou muitas divisões.
Enquanto isso acreditasse que recursos foram desviados para as campanhas eleitorais.
Em 2003 cerca de 800 indígenas
ocuparam a sede da FUNASA em São Luis exigindo a exoneração do coordenador regional da FUNASA, o fim dos contratos e da terceirização
do atendimento da saúde indígena, que a FUNASA assumisse execução da saúde etc.
Depois de quase oito dias um TAC foi
assinado, todas as reivindicações foram atendidas, menos a exoneração do coordenador, indicação do velho conhecido Sarney.
A
situação piorou, a FUNASA teve o prazo de novembro de 2003 até julho de 2004 para se preparar para assumir a execução da saúde
indígena no estado. Porém, terminado os contratos com as ONG’s indígenas houve uma lacuna no atendimento a saúde. Nada
de remédios, vacinas, só descaso. Em quanto isso, crianças e idosos morriam por falta de atendimento médico ou por falta dos
remédios de uso controlado. Na aldeia Bananal, 14 crianças morreram ano passado e dois homens cometeram suicídio. A FUNASA
fez convenio com a Missão Kaiuwa, sem convocar o Conselho Distrital, sem ouvir as lideranças indígenas e descumprindo com
mais um dos acordos contidos no TAC.
Muitos indígenas tentaram pelas vias legais garantir o atendimento de suas comunidades,
mas os acordos e documentos assinados eram sempre desrespeitados pela Coordenação Regional da FUNASA. Em atitudes desesperadas
apreenderam veículos e funcionários, o que levou a uma onda de criminalizacão das lideranças indígenas por todo o estado.
A
gota d’água foi quando a FUNASA marcou uma reunião em Grajaú com representantes indígenas e na véspera da reunião informou
a impossibilidade de suas presença na reunião. Representantes de todos os povos do estado se sentiram ultrajados e decidiram
pela interdição da ferrovia.
A situação nas aldeias era de calamidade e desespero. Com isso cerca de 500 pessoas, dos povos
indígenas Guajajara, Awá Guajá, Krikati e Gavião compuseram o movimento da aldeia Maraçanduba, que fica a cerca de 1
km da ferrovia. As famílias abrigaram os companheiros que chegaram de todos os cantos do estado, duas grandes cabanas foram
construídas para abrigas os parentes e mais a escola da aldeia se transformou em um grande alojamento.
Foi lindo ver
tantos povos diferentes, muitos grupos inclusive rivais, se unindo em prol da vida. As reuniões para fazer as discussões se
davam ao ar livre, as mulheres da aldeia se revezavam para fazer a comida. A pauta de reivindicação foi montada e a união
fez vitória na interdição da ferrovia.
O coordenador regional da FUNASA foi finalmente exonerado, os indígenas conquistaram
legalmente a autonomia político e financeira do Distrito Especial de Saúde Indígenas, demissão de alguns funcionários e nova
coordenação para a FUNASA, para o Distrito Especial de Saúde Indígena, uma intervenção nacional, investigação das denúncias
de desvio de recurso, o não indiciamento das lideranças envolvidas na interdição etc.
Iniciava-se então uma nova batalha.
Efetivação das conquistas. O movimento da aldeia Maçaranduba não morreu com a desinterdicão da ferrovia, mas está firme e
atuante. Porém, existe uma má vontade política muito grande e acredito que interesses muito fortes estão por trás dessa omissão.
É preciso sempre ficar vigilantes, principalmente as estratégias de cooptação e divisão de lideranças.
E desde longe,
em que podemos apoiar a luta dos Awá Guajá?
Tomando consciência de sua existência, divulgando essas informações
e pressionando a FUNAI para tomar iniciativas de preservação e vigilância do território. A Terra Awá teve um decreto
de homologação assinado pelo presidente Lula, porém existem vários processos pedindo a revisão do decreto de homologação.
Enquanto esses processos não forem julgados os invasores não serão retirados e a destruição acelerada.
Na verdade,
a Terra Awá Guajá sofreu um processo de degradação muito grande e é preciso pensar no seu reflorestamento. As cartas
de apoio podem ser enviadas para a Funai ou para o CIMI.
A população
vem crescendo e a caça está cada vez mais escassa. Quais serão os motivos? O consumo doméstico dessa população ou será a presença
nefasta dos invasores que vem derrubando metros e metros cúbicos de madeiras, destruindo a floresta e afugentando os animais?
Ou será os caçadores que entram às escondidas para pegar veados, tatus e outras iguarias para vender para restaurantes locais
especializados em caça?
Acredito que o desequilíbrio
e a ameaça não está no consumo e nas actividades de caça dos povos indígenas, mas sim nas actividades de cunho predatória
de pessoas que não tem a mínima responsabilidade com as conseqüências de suas ações para os povos indígenas e para as futuras
gerações.
Se dependesse
dos Awá Guajá a mata ainda estaria preservada e muitos bichos poderiam viver e se desenvolver, afirmo isto porque vejo
de perto o sofrimento deste povo quando eles expressam sua preocupação com o futuro de suas crianças, porque os “Karai"
(homem branco) estão matando a floresta e o que será dos Awá sem a floresta?!", " Awá não sabe dinheiro, não é enfermeiro,
não recebe "tamatare" (dinheiro), como vai ficar se Karai acabar com o mato?", "eu, Awá, não vou do outro mato, do lado de
Karai, por que Karai vem pro meu mato?", dizem os índios.
Não sei se convenci,
mas a intenção não era de facto convencer, mas sim compartilhar com você a angustia de quem está entregue a própria sorte
e que não domina as estruturas da sociedade não índia cheia de artifícios, onde a impunidade e o descaso se escondem e fazem
muitas vítimas. Maldito sistema!