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Entrevistas

Entrevistas com Isaac Pinhanta e Valéria Amorim, sobre Educação Indígena e a tribo Guajá

Isaac Pinhanta - “Está na hora de nós mesmos criarmos uma proposta para o nível superior”

Promover, defender, desenvolver e divulgar a educação escolar indígena de forma específica e diferenciada é um dos principais objetivos da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC). Tendo como coordenador Isaac da Silva Pinhanta, da aldeia Apiwtxa, professor indígena há dez anos, a entidade criada em 1999, e reconhecida juridicamente em 2000, se diferencia por propor uma nova forma de elaborar a política educacional, onde os atores são os próprios professores indígenas, responsáveis pela preservação das diversas manifestações culturais e histórias de cada povo, com base no crescimento sócio-ambiental. Professores, agentes agroflorestais, agentes indígenas de saúde, caciques, pajés e artesãs são os educadores responsáveis em divulgar e ampliar esses conhecimentos para assegurar uma educação diferenciada e de qualidade.
 

O que moveu a criação da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC)?

Entre 95 e 96, os professores passaram a se organizar, com as publicações e criação de materiais didáticos, passaram a ter sua escola, definir um currículo próprio, a língua garantida por constituição. Com isso, se pensou em criar uma política pelos próprios professores, para exporem esse trabalho para a sociedade. E daí, só quem poderia falar eram os professores.

A criação veio para preencher um vazio?

Isso. Quando nós participávamos de um congresso de educação indígena a gente percebia que existia um vazio no discurso. Só quem falava era o outro lado, nós tínhamos muito mais coisas a serem ditas, e acabávamos nos tornando uma pessoa que não sabia de nada. Então, refletimos e resolvemos criar uma organização para falar como é nossa língua, a nossa cultura e tradição. E de que maneira isso poderia ser implementado nas políticas públicas para que a sociedade entendesse essa realidade.

Qual o objetivo da organização?

Fortalecer diante dos setores públicos, tanto regional, nacional, internacional, essa educação escolar indígena, que é essa que nós queremos que chegue, não somente nas comunidades. Mas que a política, essa maneira da gente educar, chegue também na sociedade envolvente para que possamos ser respeitados.

Que avanços foram alcançados dentro dessa realidade?

Chegamos até o ensino médio, que é o magistério indígena específico. Foi através da Comissão Pró-Índio que esses professores - no total são 30 - conseguiram chegar ao magistério indígena. Hoje a maioria se encontra nas aldeias trabalhando.

Um dos sonhos da OPIAC é a criação do curso superior indígena. Essa discussão não é nova...

Não. Foi a partir desse processo que em 1999, nós, da organização, começamos a levantar essa discussão sobre o nível superior, como que iríamos fazer. Nós começamos a discutir com várias instituições e organizações, ligadas ao ensino diferenciado indígena. E agora acreditamos que está na hora de nós mesmos falarmos e criarmos um proposta para o nível superior. Não adianta as instituições criarem, nós é que temos que ser os atores, pois vamos dar seqüência numa formação dentro de um processo que estamos participando há tempos, não é de hoje.

Como se fundamenta a essência desse curso para os professores indígenas e até mesmo de outros cursos que venham a surgir?

Acreditamos que essa proposta seria voltada para a valorização cultural da maneira dos povos indígenas. Tanto a questão da língua, como a ciência, a história, a geografia, a nossa própria matemática, de que maneira a gente contava, porque existe tudo isso, faz parte de nossa cultura. Isso é uma riqueza que é contada de forma diferente, que por meio do ‘contato’, os próprios povos indígenas passaram a não dar valor a esse conhecimento, isso devido a pressão que sofreram. Nós professores estamos vendo essa necessidade.

De que forma se situaria essa formação superior?

Seria fazer um trabalho de pesquisa. A sala de aula vai ser a nova referência para observar, investigar aquilo que queremos dentro da cultura daquele povo. Seremos pesquisadores que vão a campo, trabalharemos criando publicações, materiais didáticos e outros.

É nesse universo que entra a riqueza dos conhecimentos orais dos povos indígenas?

Sim. É isso que estou falando. Dentro dessa investigação nós vamos identificar o espaço, o tempo, que nossos antepassados utilizaram. Por que esse povo viveu até hoje, mesmo sem ter o conhecimento da escrita? Acho que vivemos até melhor. Hoje estamos mais cautelosos, para que a gente não se atropele.

Qual será o papel do professor indígena superior?

Ele vai fazer o papel de mediador entre a sua cultura e a outra cultura, ele vai refletir tanto na sua como na da outra sociedade. Ele vai saber o que pode juntar para construir uma sociedade dos povos indígenas, sem que se interfira nas suas maneiras próprias de aprendizado, ao contrário, com o propósito de fortalecer. Mesmo que você domine o mundo da tecnologia da escrita, mas é preciso respeitar, o lado tradicional, essa maneira de aprender. Precisamos respeitar o conjunto de conhecimentos que vai da família às pessoas mais antigas.

A forma que a OPIAC pensa para a criação do curso superior difere dos moldes dos já criados no Mato Grosso e Roraima?

Sim. E acho que é o momento exato, com a criação da OPIAC, que já está num processo de reconhecimento por seu trabalho. Achamos que neste momento, o professor indígena é o articulador. Iremos conseguir por meio das investigações um currículo de formação para esses jovens. Depois poderemos pensar até na criação de cursos em outras áreas. O professor vai estar situado em suas bases e poderá ver a necessidade de cada associação e organização local.

Sobre o seminário ‘Proposta para o Curso Superior Indígena no Acre’, que ações serão traçadas?

Estudamos a legislação que garante a criação de qualquer curso para os povos indígenas, a LDB e outros. No seminário estaremos contando com a participação de representantes de organizações sensíveis a questão, que venham a contribuir com um discurso sobre a legislação, que tenham participado da criação de outros cursos, de outras que tenham uma carreira com a causa indígena, para ajudar na formulação dessa proposta. Acho que o encontro vai criar um conjunto de propostas, a partir dessa discussão, é que iremos afirmar a importância da participação dos professores para a criação do curso.

Uma das propostas está relacionada com o que a OPIAC vem desenvolvendo com a educação no sentido de assegurar o crescimento cultural e sócio-ambiental, com respeito ao conhecimento de cada povo?

Acho que é uma reflexão de acordo com que já vem sendo feito por nós, como a defesa do território. Hoje ensinamos como utilizar o recursos do território, que esse é o ponto forte dentro das escolas. Aí se situam o agente agroflorestal, o de saúde, o professor e as pessoas mais velhas, os conhecedores do conhecimento. Por isso falamos dessa forte relação com nosso trabalho em sala de aula. Tudo se situa no nosso projeto político –pedágogico.

A OPIAC possui um projeto para juntar esses atores?

Sim. Esses atores irão discutir com a comunidade para saber o que pode ser complementado dentro da escola. Eles ao invés de estarem trabalhando somente na teoria, irão a campo como é a maneira tradicional. O artesanato, antes era somente indumentária, hoje é comercial. Mas como iremos utilizar esse material sem que prejudique o meio ambiente e esses recursos. As sementes, será que vamos derrubar as árvores ou vamos coletar? A escola discute isso. O professor neste momento não tem que ser professor somente na sala de aula, mas nas discussões comunitárias para ajudar a refletir.

Então o senhor espera resultados positivos com o seminário?

Sim. Vamos criar uma proposta para um projeto que já existe na Ufac. Até o prédio já foi criado. E nós estamos criando uma proposta, para que não se crie uma outra, que venha a fugir a toda a política proposta pela OPIAC. Temos que formular a nossa para apresentar para a instituição, nós os professores indígenas, pois somos nós que estaremos lá.

Valéria Amorim - ativista defensora dos índios brasileiros

Awá Guajá, a teimosia de continuar existindo, resistindo e lutando contra o homem branco!

“É incrível imaginar que existem povos que conseguiram se isolar por mais de 500 anos e vivam de forma autónoma e autogestionária, recusando o contacto e vivendo as suas vidas em paz com a natureza e em constante fuga para não ter de contactar com o “lobo do homem, o próprio homem.”

Quem diz isto e muito mais na entrevista a seguir, é Valéria Amorim, uma anarquista maranhense, que abraçou com paixão, sensibilidade e utopia a luta indígena, contra a devastação das florestas naturais, a destruição dos ecossistemas e crimes de genocídios praticados contra povos indígenas há mais de cinco séculos pelo capital e governos.
 
Como você se envolveu com questões, lutas indígenas?
Tudo começou na universidade. Um projecto de extensão abria vagas para uma selecção de alunos da Pedagogia para participarem no Curso de Formação em Magistério para Professores Indígenas. Curiosa, fiz a minha inscrição e participei do processo selectivo. Fui aprovada! [risos] Uma bolsa de meio salário-mínimo e na mochila muitos sonhos e expectativas. Meu primeiro contacto com os povos indígenas iria começar a se dar e eu já estava fascinada só com essa possibilidade.

Na época não me autodenominava anarquista, mas iniciava algumas leituras das quais estava começando a me identificar. Foi mamão com açúcar: leituras anarquistas, mais ter contacto com a realidade de sociedades sem estado foi paixão a primeira vista! Sou anarquista e o anarquismo é viável!

Com esse projecto de extensão nós, alunos da graduação, desenvolvíamos atividades de monitoria durante as etapas presenciais onde eram reunidos em dois pólos povos indígenas de todas as etnias do estado, e fazíamos visitas nas aldeias para acompanhar as actividades passadas pelos professores para que os indígenas desenvolvessem na aldeia. Foi uma experiência muito importante do ponto de vista que pude conhecer e viver um pouco com a organização de povos Tupi e de povos Timbira, percebendo como se davam as relações familiares, a organização política e económica, a educação e a relação com o sagrado. Pude também, mais que observar, mas também sentir a discriminação que a sociedade envolvente tem e alimenta em relação aos povos indígenas. Vi antenas parabólicas de algum projecto governamental de acesso a tecnologias na educação servindo de varal para roupas. Vi o poder da televisão seduzindo os mais jovens enquanto o cantor chamava para o pátio e realizava uma cantoria. Vi a mobilização indígena por “Outros 500” quando esta passou em Imperatriz antes de seguir para Cabralia... Quanta resistência naquelas peles coradas, descendentes e sobreviventes do massacre da colonização européia. Uma revolução começou a se processar dentro de mim...

Faça um pequeno histórico das lutas dos Awá Guajá.
Antes de tudo, atenção aos navegantes de primeira viagem: eu sou extremamente prolixa. [risos] Logo vou sempre querer dar uma justificativa aqui... e um esclarecimento ali... sempre com o objetivo, muito bem intencionado, de melhorar o entendimento! [risos] Então, prepare-se...

Eles ficaram conhecidos, desde a época do contacto, como Awá Guajá, é a forma como eles se autodenominam que significa homem de verdade. São considerados como um dos últimos povos nómades e sem agricultura. Falam a língua Guajá da família lingüística do Tupi-Guarani e ocupam as terras indígenas Alto Turiaçu, Awá, Caru e Araribóia.

No Maranhão, são 17 terras indígenas, o que corresponde a cerca de 5% do território do estado. As terras indígenas Alto Turiaçu, Awá e Caru formam o grande corredor que permite a perambulação dos Awá Guajá que vivem em grupos livres, ou seja, isolados do contacto com a sociedade "branca". As terras Awá e Caru são afectadas directamente pela Ferrovia Carajás que passa ao lado dessas terras.

O Povo Awá Guajá vivia na floresta organizados em grupos familiares de cerca de 20 a 30 pessoas que perambulavam na mata, negando-se a fazer contacto e fugindo de seus inimigos tradicionais, Kaapor e Guajajara.

A sobrevivência do Povo Awá Guajá começou a ser seriamente ameaçada a partir da década de 60 com a implantação do projeto desenvolvimentista que se não foi responsável, mas foi grande incentivador do povoamento daquela região, Noroeste do Maranhão. A abertura das BR 316 e 222 (respectivamente Recife-Belém e São Luis-Açailandia) atraiu frentes agrícolas e camponeses, grilagem de terras e a criação de cidades onde antes era habitat dos  Awá Guajá, Guajajara e Kaapor.

Com essa ocupação muitos conflitos estouraram e as conseqüências para os  Awá Guajá foram o contagio de doenças como sarampo, malaria etc, e até assassinatos premeditados, o que fez com que muitos grupos se dispersassem. Em 1982 houve a implantação do Projeto Grande Carajás, o que tornou a situação mais dramática, pois trouxe para a região as siderúrgicas de ferro gusa que são movidas a carvão vegetal e, por conseguinte, o corte ilegal de madeira, carvoarias e todas as pestes e parasitas que vivem a sombra do dito desenvolvimento, criado e concebido aos moldes do capitalismo.

Porém, desde a década de 40 o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e depois a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), mantiveram contactos temporários com os  Awá Guajá, a princípio movido por razões de cunho integracionista. Destes primeiros contactos os resultados geralmente eram a morte de muitos indígenas, infectados pelas doenças “de branco” adquiridas no primeiro contacto. A partir de 1973 os contactos foram mais sistemáticos e três Postos Indígenas (PI) foram criados para prestar assistência aos índios contactados, cerca de 145 pessoas. A frente de atracção, como se chama às equipes da FUNAI responsáveis em realizar os contactos de indígenas isolados, migrou para outro estado e cerca de 100 indígenas ficaram vivendo de forma isolada, sem nenhum contacto.

Hoje estima-se que a população  Awá Guajá chegue a cerca de 360 pessoas, entre indígenas contactados e indígenas isolados. Habitantes da floresta pré-amazonica, os  Awá Guajá são povos Tupi que praticam a caça, a pesca e a colecta como forma de subsistência. Logo, são considerados povos colectores e caçadores. Acredita-se que eles vivam o nomadismo como forma de garantir a sua sobrevivência, pois no início fugiam de seus inimigos tradicionais, depois fugiam das agressões consequentes da expansão das frentes de colonização e dos grandes projetos desenvolvimentistas (construção de BR e implantação do Grande Projeto Carajás) e suas mazelas.

Somente depois do aldeamento a FUNAI introduziu a agricultura como forma de garantir mais uma alternativa alimentar para este povo. Actualmente a população  Awá Guajá contactada vive em aldeamentos próximos aos PI da FUNAI, praticando o semi-nomadismo. No período das chuvas permanecem mais tempo na aldeia, no período da seca algumas famílias chegam a passar até um mês na mata caçando e coletando mel, raízes e larvas.

Sobre a organização política, estão organizados em grupos familiares. Não existe a figura do cacique, mas as lideranças correspondem aos chefes das famílias extensas ou as pessoas mais velhas da aldeia, fiéis depositários da história e do modo de ser  Awá Guajá.
ANA - E quais são os principais problemas deste povo hoje?
Valéria - A questão fundiária e a subsistência do povo. As terras onde hoje vivem os  Awá Guajá são o que restou de mata pré-amazônica no estado. Logo, são objeto de cobiça de madeireiros e carvoeiro da região, muitos deles responsáveis pelo abastecimento das siderúrgicas existentes ao longo da Ferrovia Carajás.

O processo de invasão e destruição da floresta tem-se intensificado. Os grupos isolados novamente estão correndo risco, pois o cerco ao redor deles começa a se fechar e a sobrevivência novamente está sendo ameaçada. Nenhuma providência séria tem sido tomada para preservar o território deste povo. E eles seguem seu caminho relegados à sua própria sorte.

Os  Awá Guajá contactados vivem hoje a realidade de 33 anos de pós-contacto. Da teimosia de continuar existindo como povo, resistem a todas as formas de adversidades. Superaram doenças como a gripe, tuberculose e malaria, hoje não mais mortais, e continuam firmes enfrentando o “lobo do homem, próprio homem”. Com o crescimento populacional, vitória conquistada nos últimos anos, a população, em sua maioria constituída de jovens e de crianças, enfrenta os desafios de garantir a subsistência. Com a intensificação dos invasores dentro da área e diante da inexistência de um plano de vigilância do território, a caça já não é mais tão abundante. Fica então o dilema: como garantir a sobrevivência das nossas crianças?! São mais de 500 famílias que moram ou tem seus sítios dentro da terra indígena  Awá, são cinco grandes fazendas localizadas dentro desta terra indígena etc. Na região do Caru e Araribóia algumas lideranças indígenas estão ameaçadas de morte pelos madeireiros. E o governo brasileiro segue seu curso ignorando a voz e o clamor dos povos indígenas, primeiros habitantes dessa terra que se convencionou chamar Brasil.
Fale um pouco dos índios isolados, de etnia  Awá Guajá, da situação deles...
Não se sabe ao certo quantos são, estima-se que possam ser entre 60 a 100 pessoas, divididas em grupos pequenos e que perambulam pelas Terras Indígenas Alto Turiaçu,  Awá, Caru e Araribóia, o que corresponde ao que sobrou de floresta dentro do estado. A situação atual deles é: encurralados! Estão vivendo nas regiões mais cobiçadas pelos madeireiros, logo devem estar vivendo terror e medo, com sérios riscos de vida.

Em 2004, na Terra Indígena Caru, um casal, mãe e filho, foi encontrado pelos  Awá Guajá que vivem hoje a situação do pós-contacto. Eles haviam ido para uma caça demorada, num ponto bem distante da aldeia. Lá encontraram o casal, fizeram o convite para que viessem morar com eles na aldeia e eles aceitaram.

No ano passado, na Terra Indígena Araribóia, um grupo de cerca de 20 pessoas fez contacto com os Guajajara que vivem naquela terra. Os Guajajara não conseguiram chegar muito perto do grupo, pois eles se assustaram e sumiram no mato, deixando todos os seus pertences para trás (arco e flechas, utensílios etc). A partir de contactos como esses narrados por indígenas e por pessoas dos lugarejos próximos as terras indígenas, é possível detectar a presença desses grupos nessa região.

Anteriormente a política da FUNAI para esses casos era criar uma frente de atracção e contactar os índios. Os objetivos eram parte de uma política nacional de integração dos indígenas na sociedade nacional, entende-se integração como a negação de suas raízes culturais em favor da criação de um Estado-Nação uno. Em outras palavras, genocídio cultural.

Passado algum tempo a FUNAI desenvolveu como prática demarcar e homologar as terras onde existissem indígenas isolados, fazendo contacto apenas nos casos em que os povos isolados estejam correndo risco de vida.

É incrível imaginar que existem povos que conseguiram isolar-se por mais de 500 anos e vivam de forma autónoma e autogestionária, recusando o contacto e vivendo as suas vidas em paz com a natureza e em constante fuga para não ter contacto com o “lobo do homem, o próprio homem”. Será que inconscientemente ou conscientemente eles sabem as consequências de se deixar envolver com o “homem branco” e seus sistemas? Incógnita...

Você participou recentemente do bloqueio da Ferrovia Carajás em protesto contra a Fundação Nacional da Saúde (Funasa) e o descaso com os indígenas e mortes de crianças. Como foi tudo isso?
Isso é uma longa história. Com o governo Collor criou-se uma portaria que retirava da FUNAI, órgão indigenista e não de saúde, a responsabilidade pela saúde indígena, o que passou para o Ministério da Saúde. Daí uma portaria fez com que a FUNASA assumisse a questão da saúde indígena no Brasil. Com as conferências de Saúde Indígena foi pensado um modelo de estrutura e atendimento que respeitasse minimamente as especificidades de cada povo, onde os indígenas pudessem decidir e pensar o atendimento a saúde de suas comunidades, nasce assim um subsistema de saúde indígena.

Teoricamente deveria haver os Conselhos Locais, Conselhos Distritais e o Distrito Especial de Saúde Indígena. No Maranhão, a princípio se pensava na instalação de cinco distrito, ao final apenas um distrito foi instalado e funciona em São Luis, lugar bem distante das aldeias. Dos Conselhos Locais apenas um foi criado. O Conselho Distrital foi composto e desarticulado. Resultado, não havia o controle social. Na III Conferencia Nacional de Saúde Indígena foi aprovado a terceirização de algumas ações da saúde indígena por organizações não governamentais. A FUNASA deliberadamente incentivou a criação de associações indígenas para descentralizar as acções, porém não ofereceu formação.

As ONG’s indígenas, como ficaram conhecidas, conseguiram prestar os atendimentos emergenciais a que se prestaram, mas as lideranças avaliaram que os recursos repassados não eram suficientes para cobrir todas as despesas, que as parcelas atrasavam e os “parentes” começaram a cobrar deles mesmos ao invés de cobrar do Estado, o que aumentou o número de divisões entre os indígenas etc.

O coordenador regional da FUNASA desenvolveu uma política de racha entre as lideranças indígenas, o que gerou muitas divisões. Enquanto isso acreditasse que recursos foram desviados para as campanhas eleitorais.

Em 2003 cerca de 800 indígenas ocuparam a sede da FUNASA em São Luis exigindo a exoneração do coordenador regional da FUNASA, o fim dos contratos e da terceirização do atendimento da saúde indígena, que a FUNASA assumisse execução da saúde etc.

Depois de quase oito dias um TAC foi assinado, todas as reivindicações foram atendidas, menos a exoneração do coordenador, indicação do velho conhecido Sarney.

A situação piorou, a FUNASA teve o prazo de novembro de 2003 até julho de 2004 para se preparar para assumir a execução da saúde indígena no estado. Porém, terminado os contratos com as ONG’s indígenas houve uma lacuna no atendimento a saúde. Nada de remédios, vacinas, só descaso. Em quanto isso, crianças e idosos morriam por falta de atendimento médico ou por falta dos remédios de uso controlado. Na aldeia Bananal, 14 crianças morreram ano passado e dois homens cometeram suicídio. A FUNASA fez convenio com a Missão Kaiuwa, sem convocar o Conselho Distrital, sem ouvir as lideranças indígenas e descumprindo com mais um dos acordos contidos no TAC.

Muitos indígenas tentaram pelas vias legais garantir o atendimento de suas comunidades, mas os acordos e documentos assinados eram sempre desrespeitados pela Coordenação Regional da FUNASA. Em atitudes desesperadas apreenderam veículos e funcionários, o que levou a uma onda de criminalizacão das lideranças indígenas por todo o estado.

A gota d’água foi quando a FUNASA marcou uma reunião em Grajaú com representantes indígenas e na véspera da reunião informou a impossibilidade de suas presença na reunião. Representantes de todos os povos do estado se sentiram ultrajados e decidiram pela interdição da ferrovia.
A situação nas aldeias era de calamidade e desespero. Com isso cerca de 500 pessoas, dos povos indígenas Guajajara,  Awá Guajá, Krikati e Gavião compuseram o movimento da aldeia Maraçanduba, que fica a cerca de 1 km da ferrovia. As famílias abrigaram os companheiros que chegaram de todos os cantos do estado, duas grandes cabanas foram construídas para abrigas os parentes e mais a escola da aldeia se transformou em um grande alojamento.

Foi lindo ver tantos povos diferentes, muitos grupos inclusive rivais, se unindo em prol da vida. As reuniões para fazer as discussões se davam ao ar livre, as mulheres da aldeia se revezavam para fazer a comida. A pauta de reivindicação foi montada e a união fez vitória na interdição da ferrovia.

O coordenador regional da FUNASA foi finalmente exonerado, os indígenas conquistaram legalmente a autonomia político e financeira do Distrito Especial de Saúde Indígenas, demissão de alguns funcionários e nova coordenação para a FUNASA, para o Distrito Especial de Saúde Indígena, uma intervenção nacional, investigação das denúncias de desvio de recurso, o não indiciamento das lideranças envolvidas na interdição etc.

Iniciava-se então uma nova batalha. Efetivação das conquistas. O movimento da aldeia Maçaranduba não morreu com a desinterdicão da ferrovia, mas está firme e atuante. Porém, existe uma má vontade política muito grande e acredito que interesses muito fortes estão por trás dessa omissão. É preciso sempre ficar vigilantes, principalmente as estratégias de cooptação e divisão de lideranças.
 
E desde longe, em que podemos apoiar a luta dos Awá Guajá?
Tomando consciência de sua existência, divulgando essas informações e pressionando a FUNAI para tomar iniciativas de preservação e vigilância do território. A Terra  Awá teve um decreto de homologação assinado pelo presidente Lula, porém existem vários processos pedindo a revisão do decreto de homologação. Enquanto esses processos não forem julgados os invasores não serão retirados e a destruição acelerada.

Na verdade, a Terra  Awá Guajá sofreu um processo de degradação muito grande e é preciso pensar no seu reflorestamento. As cartas de apoio podem ser enviadas para a Funai ou para o CIMI.

A população vem crescendo e a caça está cada vez mais escassa. Quais serão os motivos? O consumo doméstico dessa população ou será a presença nefasta dos invasores que vem derrubando metros e metros cúbicos de madeiras, destruindo a floresta e afugentando os animais? Ou será os caçadores que entram às escondidas para pegar veados, tatus e outras iguarias para vender para restaurantes locais especializados em caça?
Acredito que o desequilíbrio e a ameaça não está no consumo e nas actividades de caça dos povos indígenas, mas sim nas actividades de cunho predatória de pessoas que não tem a mínima responsabilidade com as conseqüências de suas ações para os povos indígenas e para as futuras gerações.

Se dependesse dos  Awá Guajá a mata ainda estaria preservada e muitos bichos poderiam viver e se desenvolver, afirmo isto porque vejo de perto o sofrimento deste povo quando eles expressam sua preocupação com o futuro de suas crianças, porque os “Karai" (homem branco) estão matando a floresta e o que será dos  Awá sem a floresta?!", " Awá não sabe dinheiro, não é enfermeiro, não recebe "tamatare" (dinheiro), como vai ficar se Karai acabar com o mato?", "eu, Awá, não vou do outro mato, do lado de Karai, por que Karai vem pro meu mato?", dizem os índios.

Não sei se convenci, mas a intenção não era de facto convencer, mas sim compartilhar com você a angustia de quem está entregue a própria sorte e que não domina as estruturas da sociedade não índia cheia de artifícios, onde a impunidade e o descaso se escondem e fazem muitas vítimas. Maldito sistema!

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